sábado, 4 de fevereiro de 2012

Serpente

A serpente — tanto quanto o homem, mas contrariamente a ele — distingue-se de todas as espécies animais. Se o homem está situado no final de um longo esforço genético, também será preciso situar essa criatura fria, sem patas, sem pêlos, sem plumas, no início deste mesmo esforço. Nesse sentido, Homem e Serpente são opostos, complementares, Rivais. Nesse sentido, também, há algo da serpente no homem e, singularmente, na parte de que o seu entendimento tem o menor controle. Um psicanalista diz que a serpente é um vertebrado que encarna a psique inferior, o psiquismo obscuro, o que é raro, incompreensível, misterioso. E, no entanto, não há nada mais comum, nada mais simples do que uma serpente. Mas sem dúvida não há nada mais escandaloso para o espírito, justamente em virtude dessa simplicidade.

Nas origens da vida: serpente, alma e libido

Viajando pelo sul da República dos Camarões, observa-se que os pigmeus, na sua linguagem de caça, representam a serpente com uma linha no chão. Alguns grafites da época paleolítica certamente têm a mesma significação. Pode-se dizer que eles restauram a serpente à sua expressão primeira. Ela não passa de uma linha, mas uma linha viva; uma abstração, mas uma abstração encarnada. A linha não tem começo nem fim; é só movimentar-se para tornar-se suscetível a todas as representações, a todas as metamorfoses. Da linha só enxergamos a sua parte próxima, presente, manifesta. Mas sabemos que ela continua, de um lado e de outro, pelo invisível infinito. O mesmo acontece com a serpente. A serpente visível na terra, o instante de sua manifestação, é uma hierofania. De um lado e de outro ”sentimos” que ela continua nesse infinito material que nada mais é do que primordial indiferenciado, reservatório de todas as latências, subjacentes à terra manifestada. A serpente visível é uma hierofania do sagrado natural, não espiritual, mas material. No mundo diurno, ela surge como um fantasma palpável, mas que escorrega por entre os dedos, da mesma forma como desliza através do tempo contável, do espaço mensurável e das regras do razoável para refugiar-se no mundo de baixo, de onde vem e onde a imaginamos intemporal, permanente e imóvel na sua completude. Rápida como o relâmpago, a serpente visível sempre surge de uma abertura escura, fenda ou rachadura, para cuspir morte ou vida antes de retornar ao invisível. Ou então abandona os ímpetos masculinos para fazer-se feminina: enroscar-se, beija, abraça, sufoca, engole, digere e dorme. Esta serpente fêmea é a invisível serpente-princípio que mora nas profundas camadas da terra. Ela é enigmática, secreta; é impossível prever-lhe as decisões, que são tão súbitas quanto as suas metamorfoses. Ela brinca com os sexos como com os opostos; é fêmea e macho; gêmea em si mesma, como tantos deuses criadores que em suas primeiras representações sempre aparecem como serpentes cósmicas. A serpente não apresenta, portanto, um arquétipo, mas um complexo de arquétipos ligados à noite fria, pegajosa e subterrânea das origens: todas as serpentes possíveis formam, juntas, uma única multiplicidade primordial, uma Coisa primordial indivisível que não cessa de desenroscar-se, desaparecer e renascer. Mas o que seria essa Coisa primordial senão a vida na sua latência ou a camada mais profunda da vida? Ela é o reservatório, o potencial em que se originam todas as manifestações. A vida do submundo tem, justamente, de se refletir na consciência diurna sob a forma de uma serpente, os caldeus usavam a mesma palavra para vida e serpente. O simbolismo da serpente está efetivamente ligado à própria idéia de vida; em árabe, a serpente é el-hayyah e a vida, el-hayat; El-Hay, um dos principais nomes divinos, não deve ser traduzido por vivo, como se faz comumente, mas por o vivificante, aquele que dá a vida ou que é o próprio princípio da vida. A serpente visível só aparece, portanto, como breve encarnação de uma Grande Serpente Invisível, causal e atemporal, senhora do princípio vital e de todas as forças da natureza. É um velho deus primário que se reencontra à origem de todas as cosmogêneses, antes que as religiões do espíritos a destronem. É aquilo que anima e que mantém. No plano humano, é o símbolo duplo da alma e da libido: a serpente é um dos mais importantes arquétipos da alma humana. No tantrismo, é a Kundalini, enroscada na base da coluna vertebral, sobre o chacra do estado de sono, ela fecha com a boca o canal do pênis. Quando desperta, a serpente sibila e se enrijece; opera-se, então, a ascensão sucessiva dos chacras: é a subida da libido, a manifestação renovada da vida.

A serpente cósmica

Do ponto de vista macrocósmico, a Kundalini tem como homólogo a serpente Ananta, que encerra em seus anéis o eixo do mundo. Associada a Vixenu e a Xiva (Shiva?), Ananta simboliza o desenvolvimento e a reabsorção cíclica, mas, enquanto guardiã do nadir, é carregadora do mundo, cuja estabilidade ela assegura. Para construir a casa indiana que, como toda casa, tem de situar-se no centro do mundo, introduz-se uma estaca na cabeça do naga subterrâneo, cuja localização é determinada pelo geomante. Os carregadores do mundo às vezes são elefantes, touros, tartarugas, crocodilos, etc. Mas não apenas substitutos ou complementos teriomórficos da serpente na sua função primeira. Assim, a palavra sânscrito naga significa, ao mesmo tempo, elefante e serpente, o que é comparável à homologia da serpente e do tapir da representação do mundo dos maia-quichês. Esses animais de força são freqüentemente representados apenas por suas goelas, com um corpo de serpente, ou então se apóiam, eles próprios, sobre uma serpente. Em todos os casos, exprimem o aspecto terrestre, a agressividade e a força da manifestação do grande deus das trevas que a serpente representa universalmente.

Há duas maneiras de manter: tanto pode ser carregado como abraçando a criação num círculo contínuo que impede a sua desintegração. É o que a serpente, sob a forma de Uróboro, a serpente que morde a própria cauda. Aqui, a circunferência vem completar o centro para sugerir a própria idéia de Deus. A Uróboro também é símbolo da manifestação e da reabsorção cíclica; é a união sexual em si mesma, autofecundadora permanente, como o demonstra a sua cauda enfiada na boca; é transmutação perpétua de morte em vida, pois suas presas injetam veneno no próprio corpo ou a dialética material da vida e da morte, a morte que sai da vida e a vida que sai da morte. Se ela evoca a imagem do círculo seria sobretudo a dinâmica do círculo, a primeira roda, de aparência imóvel, uma vez que só gira em torno de si mesma, mas cujo movimento é infinito, pois leva perpetuamente a si mesma. A Uróboro, animadora universal, não é apenas promotora da vida, mas da duração: cria o tempo, como a vida, em si mesma é freqüentemente representada sob a forma de uma corrente retorcida, a corrente das horas. Responsável pelo movimento dos astros, é, sem dúvida, a primeira figuração, a mãe do Zodíaco. A Uróboro, velho símbolo de um velho Deus natural destronado pelo espírito, permanece uma grande divindade cosmográfica e geográfica: como tal, está gravada na periferia de todas as primeiras imagens do mundo, como o disco de Benin, sem dúvida a mais antiga imago mundi negro-africana, em que, com a sua linha sinuosa, associando os contrários, ela encerra os oceanos primordiais no meio dos quais flutua o quadrado da Terra.

Temível em sua ira, ela se torna o Leviatã hebreu, o Midgardorm escandinavo, “mais antiga que os próprios deuses”, segundo os eddas; quando bebe, provoca as marés; quando bufa, as tempestades. Ainda a nível das cosmogêneses, é o próprio Oceano, de que nove espiras cercam o círculo do mundo, enquanto a décima, furtivamente introduzida por baixo da criação, forma o Estige, segundo a Teogonia de Hesíodo. Se diria uma Mao que recolhe, no final, o que a outra lançou; e é este o sentido dessa emanação do indiferenciado primordial, de onde tudo provém e aonde tudo volta para regenerar-se. Os infernos e os oceanos, a água primordial e a terra profunda formam apenas uma prima matéria, uma substância primordial, a da serpente. Enquanto espírito da água primeira, ela é o espírito de todas as águas, as que correm debaixo ou na superfície da terra, e as que vêm de cima. Inúmeros rios da Grécia e da Ásia Menor trazem o nome de Ofis ou Draco; ela é também o Pai Reno, o Sena Deus Sequana, a Mãe Ganges, cuja importância religiosa é conhecida, a Mãe Volga, o rio-deus. Muitas vezes os atributos teriomorfos especificam a função terrestre ou celeste desta divindade das águas: assim se explica o Tibrecornu de Virgílio, imagem em que a serpente assume a força do touro, representada por seus chifres; da mesma forma, Achelôo, o maior rio da Grécia antiga, tina alternadamente a forma de serpente e do touro para enfrentar Herácles. A serpente, divindade das nuvens e das chuvas fertilizadoras, assume as vezes, os poderes do carneiro, é a serpente criocéfala, comum da iconografia céltica, sobretudo gaulesa; ou do pássaro: são os dragões alados do Extremo Oriente e seus homólogos do panteão meso-americano, as serpentes com plumas.

Conhece-se a importância fundamental de que se reveste essas imagens simbólicas nas duas grandes civilizações agrárias, que reservam uma atenção especial aos fenômenos meteorológicos. O dragão celeste é, no Extremo Oriente, o pai mítico de numerosas dinastias, e os imperadores da China traziam-no bordado sobre os seus estandartes para significar a origem divina de sua monarquia.

Nas mitologias ameríndias, do México ao Peru, o mito do pássaro-serpente coincide com as mais antigas religiões do cultivo do milho; ela é associada à umidade e às águas da terra, entretanto, nas suas formas mais elevadas, está sempre ligada ao céu. Não é apenas a serpente de plumas verdes e a serpente nuvem com barba de chuva, mas também o filho de serpente, a Casa dos Orvalhos e o Senhor da Aurora. A serpente de plumas é, primeiramente, a nuvem de chuva e, de modo privilegiado, o cúmulo de reflexos prateados do meio do verão; daí o seu outro nome: Deus-Branco, cujo ventre negro deixa escapar o suor da chuva. No Novo México, é representado como um corpo de serpente que carrega nas costas o cúmulo e cuja língua é o relâmpago recortado. Não se deve esquecer que o dragão chinês nada no meio de ondas de cúmulos exatamente iguais.

O Velho-Deus, o Antepassado mítico

Transformada em antepassado mítico e herói civilizador, cuja forma mais conhecida é o Quetzalcoatl dos toltecas, mais tarde retomado pelos astecas, a serpente de encarna e se sacrifica pelo gênero humano. A iconografia índia esclarece o sentido deste sacrifício. O Codex de Dresde apresenta a ave de rapina mergulhando as suas garras no corpo da serpente para dele extrair o sangue destinado a formar o homem civilizado: aqui, o deus (serpente) dirige contra si mesmo o seu atributo de força celeste, de ave solar, para fecundar a Terra dos homens, pois esse deus é a nuvem, e o seu sangue, a chuva nutritiva que tornará possível o milho e o homem de milho. Haveria muito a dizer sobre esse sacrifício, que não é só o da nuvem mas também a morte do desejo, no cumprimento de sua missão de amor. Num plano mais especificamente cosmogônico, e que, no sufismo, torna-se a base de uma mística, é a dilaceração da unicidade primeira, que se desdobra e se divide nos seus dois componentes para tornar possível a ordem humana. Para alguns, o sacrifício de Quetzalcoatl é uma retomada do esquema clássico da iniciação, feita de uma morte seguindo-se ao renascimento: ele se transforma no Sol e morre no ocidente para renascer no oriente; por ser dois em um e dialético em si mesmo, é o protetor dos gêmeos.
O mesmo complexo simbólico é encontrado na África negra; para os dogons, Nommo, deus da água, representado sob a forma de um angüípede, é o ancestral mítico e herói civilizador que traz aos homens os seus mais preciosos bens culturais: a forja e os cereais; também ele é duplo em um e se sacrifica pela nova humanidade. Pode-se citar ainda muitos exemplos das tradições africanas, notadamente o de Dan ou Da, grande divindade de Benin e da costa dos Escravos, que é a serpente e o fetiche arco-íris. Transformada em Damballah-Weddo no vodu haitiano, ela preside fontes e rios, pois sua natureza é, ao mesmo tempo, movimento e água. A pedra do raio lhe é consagrada; ela não aceita que os seus “servidores” (seus possuídos), invoquem divindades que façam o bem e o mal, com exceção dos gêmeos, que lhe são próximos. É também relâmpago e, por excelência, o deus da força e da fecundidade. No Daomé, ainda hoje, Dan é o velho deus natural, a Uróboro do disco de Benin que descrevi um pouco acima, ele próprio andrógino e gêmeo. Assim se explica o culto das pítons sagradas conservadas dos templos Abomé, a quem são dedicadas jovens que noivam, ritualisticamente, com os deuses, na época das sementeiras. Para os iorubas, Dan é Oxumaré, o arco-íris, que liga a parte de cima do mundo à de baixo e só aparece depois das chuvas. Os povos da costa da Guiné invocam a serpente nos períodos de seca ou de chuvas excessivas. Todos esses exemplos, tirados das civilizações que se elaboram independentemente de outras, explicam as origens dessa função meteorológicas da serpente, que também tem vestígios no folclore francês e estadunidense: é universalmente difundida a idéia de que o arco-íris é uma serpente que mata a sede, no mar, idéia encontrada na França, mas também entre os peles-vermelhas de Nevada, os bororos da América do Sul, na África do Sul e na Índia. Todas essas acepções não passam de diferentes aplicações, em determinadas áreas, do mito da Grande Serpente Original, expressão do indiferenciado primordial. Está no alfa, mas também no ômega de toda manifestação; o que vem explicar a sua importante significação escatológica, pela qual se retorna à evolução tão complexa do símbolo da serpente na própria civilização.

Para os bataks da Malásia, uma serpente cósmica vive nas regiões subterrâneas e irá destruir o mundo. Para os huichols ela tem duas cabeças, na verdade duas monstruosas mandíbulas abertas para o Ocidente e o Oriente, pelas quais cospe o sol nascente e engole o sol poente. Chega-se, assim, ao mais antigo deus criador do mundo mediterrâneo, a serpente Atum, pai de Enèade de Heliópolis. No início dos tempos, Atum cuspiu toda a criação, depois de ter emergido sozinha das águas primordiais. Como estava só, os textos hesitam a respeito da origem dessa cuspida; alguns dizem que veio, não de sua boca, mas do seu sexo, para isso tendo se masturbado. Surgiu, assim, o primeiro par de deuses Chtu e Ptenis, que puseram no mundo Geb e Nut, o ar e a umidade, a terra e o céu, respectivamente. Depois, tendo esses deuses procriado o detalhe da Terra e dos homens, tudo passou a existir. Então, diante da sua criação, Atum falou, conforme relata o Livro dos mortos: Sou aquilo que permanece;… o mundo voltará ao caos indiferenciado, e então eu me transformarei em serpente, que nenhum homem conhece, que nenhum deus vê! Nenhuma mitologia foi tão severa na sua ilustração da Grande Serpente Original. Atum não se arrisca a engolir o Sol. Não tem o que fazer desse ctoniano, desse inferno cotidiano em que a nossa vida se desfaz e de regenera. Só é a serpente antes e depois da totalidade do continuum espaço-temporal, ali onde nem deuses nem homens têm acesso; ela é verdadeiramente o primeiro “velho deus”, o deus otiosus natural na sua transcendência implacável.

Entretanto, no Egito e em outros lugares os infernos terrestres que os astros do dia tem de atravessar diariamente para assegurar a sua regeneração são inteiramente colocados sob signo da serpente. Embora Atum não tenha um lugar dentro desses acontecimentos, é ele quem os ilumina de fora; despojado de sua forma ofídica, toda noite transforma-se no deus do sol poente que indica, ao oeste, a via de acesso às profundezas. Em seguida, afunda-se na Terra, numa barca repleta de toda a sua corte celeste.

A idéia de que todo o ventre da Terra, onde se operará a alquimia da regeneração, seja ofídico por excelência aparece em cada detalhe da minuciosa descrição dado pelo Livro dos mortos: o caminho a ser percorrido é dividido em doze cômodos, correspondendo às doze horas da noite. A barca solar inicialmente atravessa extensões de areia habitadas por serpentes; logo, ela própria se transforma em serpente. Na sétima hora, aparece uma nova figura ofídica, Apófis, encarnação monstruosa do senhor dos infernos e prefiguração do Satanás bíblico, cujas espirais preenchem uma eminência de 450 côvados de comprimento, e sua voz dirige os deuses para si e estes o ferem. Este episódio marca o ponto máximo dos acontecimentos. Na 11ª hora, a corda que puxa a barca transforma-se em serpente. Durante a 12ª hora, por fim, no cômodo do crepúsculo, a barca solar é puxada através de uma serpente de 300 côvados de comprimento e, ao sair pela boca desta serpente, o sol nascente aparece no seio da Terra-mãe, sob a forma de um escaravelho: o astro do dia nasce mais uma vez, para empreender a sua ascensão. Em resumo, o Sol tem então de transformar-se em serpente para lutar contra outras serpentes, uma, em particular, antes de ser digerido e expulso pelo intestino em forma de serpente da Terra. Haveria muito o que dizer sobre esse desenvolvimento de um complexo de engoli-engolido, comparado ao qual a aventura de Jonas parece simples. Globalmente, a serpente aparece como a grande regeneradora e iniciadora, a senhora do ventre do mundo, e como o próprio o ventre, ao mesmo tempo que inimigo do sol e assim (no sentido dialético do termo), da luz; portanto, da parte espiritual do homem.

A fim de melhor desenvolver essas faces contraditórias da entidade simbólica inicial, o livro sagrado dos egípcios as separa em várias serpentes. Mas o papel proeminente reservado a Apófis mostra que, dentro de todas as características da serpente originalmente confundidas, distingue-se a de uma força hostil. Assemelha-se à valorização positiva do espírito e à valorização negativa das forças naturais, inexplicáveis, perigosas, pelas quais se elaborará gradativamente o conceito, não mais físico, mas moral do Mal, de um Mal intrínseco. Com Apófis ainda não se chega lá, mas se prepara a trilha que mais tarde virá a tornar-se uma via real. Pois a significação de Apófis permanece ambígua: por um lado, na sétima hora, ela própria dirige contra o seu corpo os deuses que irão feri-la; desempenha, portanto, um papel positivo e, afinal, contrário ao seu interesse egoísta, no cumprimento da regeneração solar; por outro lado, os sacerdotes de Heliópolis a consideram a Inimiga quando, durante as cerimônias conjugatórias, pisoteiam e esmagam a sua efígie no chão de seus templos para ajudar Ré (Rá), príncipe da luz, a derrotar esse primeiro príncipe das trevas: isto se realizava pela manhã, à tarde e à noite, e em certas épocas do ano, ou então, durante uma tempestade, quando chovia abundantemente, ou num eclipse solar: esta eclipse significava que Ré (Rá) acabava de perder na sua luta contra Apófis.

Vivificador-Inspirador: a serpente médico e adivinho

Aqui, mais do que um desejo de hegemonia do espírito em detrimento das forças naturais, é preciso ver uma preocupação em equilibrar essas duas forças fundamentais do ser, impedindo que uma, a que não é controlável, tente prevalecer sobre a outra. A mesma preocupação é encontrar na mitologia grega, com o episódio da luta de Zeus e Tifão, outro Apófis. Tifão, filho de Gaia (a Terra) ou de Hera, já não é uma serpente, mas um monstruoso dragão de cem cabeças, cercado de víboras, da cintura até embaixo, e maior do que as montanhas. Assim, ele encarna bem a enormidade das forças naturais insurgidas contra o espírito. É significativo que para vencer este rebelde Zeus só disponha da ajuda de Atena, a Razão, sua filha, enquanto os demais deuses olímpicos, apavorados se refugiam no Egito (esse Egito mítico que virá a tornar-se o símbolo da natureza bestial) onde transformam-se em animais. A natureza infernal de Tifão é confirmada pela sua descendência: ele gera Hidra de Delfos, a Quimera e dois cães, Ortos e Cérbero. Mas Cérbero não é maligno em si. Desempenha um papel dialeticamente positivo nesses infernos gregos onde se cumpre o ciclo perpétuo da regeneração. Portanto, o pensamento grego, como o egípcio, só ataca a serpente na medida em que esta quer desenvolver o cosmo ao caos. Na medida em que, pelo contrário, ela permanece a outra face indispensável do espírito, a vivificadora, a inspiradora, através da qual a seiva sobe das raízes a cúpula da árvore, é aceita e até glorificada. Assim, todas as grandes deusas da natureza, essas deusas mães que no cristianismo voltarão sob a forma de Maria, mãe de Deus encarnado, têm a serpente como atributo. Mas a mãe de Cristo, segunda Eva, esmagará a cabeça da serpente ao invés de escutá-la.

Primeiramente, Ísis que traz na testa a Naja real, o uraues de ouro puro, símbolo de soberania, conhecimento, vida e juventude divina; em seguida, Cíbele e Deméter; e a deusa das serpentes, de Creta, época de Amenófis II, Uraeus também seja representado como a base do disco solar. A própria Atena, com toda a sua origem celeste, tem a serpente como atributo. E que símbolo mais claro pode haver da aliança entre a razão e as forças naturais do que o mito de Laocoonte, em que as serpentes saem do mar para punir o sacerdote culpado de sacrilégio e vão em seguida enroscar-se ao pé da estátua de Atena?

O papel inspirador da serpente aparece claramente nos mitos e ritos relativos à história e ao culto das duas grandes divindades da poesia, da música, da medicina e, sobretudo, da adivinhação, Apolo e Dioniso. Apolo, o mais solar, o mais olimpiano dos olimpianos, inaugura, de certa forma, a sua carreira libertando o oráculo de Delfos dessa outra hipertrofia das forças naturais que é a serpente Píton. Não se trata de negar que haja alma e inteligência na natureza como o enfatiza Aristóteles. Ao contrário, trata-se de libertar essa alma e essa inteligência profunda e inspiradora que devem fecundar o espírito e assim assegurar a ordem que ele se propõe a estabelecer. Apolo, nesse sentido, está longe de opor-se a Dioniso e a maior parte dos os autores modernos hoje concorda neste ponto. Ele apenas vem do pólo contrário do ser e sabe que a complementação dos dois pólos é indispensável à realização da harmonia, que é a meta suprema. Assim, o transe e o êxtase, por mais dionisíacos que sejam, não estão excluídos do mundo apoliniano: a Pítia que só profetiza em transe é um exemplo disto.

Significativa sob este aspecto é a história de Cassandra, por quem Apolo viria a se apaixonar. Cassandra nasce com um irmão gêmeo, Heleno; seus pais os esquecem num templo de Apolo, depois das festas celebradas em honra ao seu nascimento. No dia seguinte, quando vêm buscá-los, são encontrados adormecidos com duas serpentes tocando-lhes os órgãos dos sentidos com a língua para purificá-los. Com os gritos assustados dos pais, os animais retiram-se aos seus loureiros sagrados. Depois disso, as crianças revelam seu dom de profecia, transmitido pela purificação das serpentes. Essa purificação parece bem próxima da catarse pitagórica em que se reconhece uma influência apolínea. Geralmente diz-se que Cassandra era uma profetisa inspirada. O Deus a possuía e ela emitia os seus oráculos num delírio. Heleno, ao contrário, interpretava o futuro a partir dos pássaros e de sinais externos. Pode-se dizer sem equívocos que as duas faces da adivinhação, a apoliniana e a dionisíaca, originaram-se igualmente da serpente.

Também significativo é o mito de Íamo, filho de Apolo e de uma mortal: criado por serpentes que o alimentam com mel, torna-se sacerdote e pai de uma longa linhagem de sacerdotes. Melampo, ao mesmo tempo adivinha e médico, tem os ouvidos purificados por serpentes a fim de compreender a linguagem dos pássaros. É chamado de o homem dos pés pretos, pois diz a tradição que, ao nascer, sua mãe o colocou à sombra mas por inadvertência deixou os pés expostos ao Sol. Aqui, a ciência da serpente também estende seu poder ao reino das sombras e da luz, concilia a alma e o espírito, as duas zonas da consciência, o sagrado esquerdo e o sagrado direito.

Mas, no mundo grego, é a figura de Dioniso que encarna mais completamente o sagrado esquerdo, fundamentalmente associado á imagem da serpente. Guthrie especifica que o apogeu do culto dionisíaco coincide, na Grécia, com o da perfeição literária, e que o maior dom de Dioniso era um sentimento de liberdade total. Assim, o Grande Liberador aparece historicamente no momento em que, com a perfeição da escrita, instaura-se na cidade o triunfo do Logos helênico. Os êxtases coletivos, os transes, as possessões, insurreições da serpente do ser, aparecem desde então como uma vingança da natureza sobre a Lei, filha só da razão, que tende a oprimi-la. É, no final, um retorno à harmonia através do excesso; ao equilíbrio por uma loucura passageira; é uma terapêutica da serpente. Os êxtases, transes e possessões sem dúvida existiam bem antes da vinda de Dioniso; nasceram com as religiões naturais e o culto das Grandes Deusas ctonianas que, como disse, tinham, todas, a serpente como atributo. Mas é nesse momento histórico, em que se esboçam em Atenas o pensamento e a sociedade modernos, que elas vão reganhar tal fervor que os seus vestígios subsistirão para sempre neste mundo em que o domínio da sociedade patriarcal se tornam cada vez mais fortes.

É esta vontade tenaz de libertar a natureza humana da ditadura da razão que dará nascimento às seitas gnósticas, às confrarias de dervixes e, no mundo cristão, a toda uma categoria de heresia que combaterá a Igreja Romana. Cada um desses movimentos luta à sua maneira contra a condenação da serpente: nenhum ser, (proclamam os pératas gnósticos do século III), nem no céu, nem na terra, nem nos infernos, formou-se sem a serpente.[1] E os ofitas, cujo nome, por si só, é uma profissão de fé, acrescentam: nós veneramos a serpente a porque Deus fez dela a causa da gnose para a humanidade… Os nossos intestinos, graças aos quais nos alimentamos e vivemos, não reproduzem a figura da serpente?[2] Essa analogia, que não deixa de lembrar a analogia entre a serpente e o labirinto, antecipa de modo espantoso as descobertas modernas a respeito da base do psiquismo. Ao mesmo tempo, esclarece a origem das práticas adivinhatórias fundadas sobre o exame das vísceras. Certas sociedades animistas que o mundo moderna ainda não destruiu persiste em manter viva e ativa essa corrente de pensamento paralelo que, em outros lugares manteve um esoterismo estéril. Assim é o Zar abissínio e, sobretudo, o vodu daomeano e haitiano.

Mas tudo isso está contido e é perfeitamente explicado em imagens pela história do próprio Dioniso. Sob os nomes de Zagreu ou Sabázio, ele nasceu, segundo as tradições cretense, frígia e, finalmente, órfica, da união de Zeus e Perséfone, da alma e do espírito, do Céu e da Terra. Para realizar essa união, a tradição diz que Zeus se transforma em serpente. Isso equivale a dizer que o Espírito, por mais divino que seja, reconhece a anterioridade no incriado primordial, do qual ele próprio originou e onde terá de mergulhar para regenerar-se e dar frutos. Mas Dioniso é também, essencialmente, o Iniciado que deverá sacrificar-se para renascer e agir. Por isso, é dilacerado pelos Titãs, para renascer pela vontade reafirmada de Zeus, o Espírito. Só então, as bacantes e os cortejos de possuídos poderão, como Atena, ter a serpente na mão. O apólogo é claro: mostra que a serpente, em si, não é boa ou má, mas que possui duas valências, pois o ser da serpente foi uma grande força; é o que sabem os sábios conhecedores da natureza: que há, na serpente, uma excelente arte e até virtude no seu ser. A serpente não médica, é medicina, assim deve ser entendido o caduceu, cujo bastão é feito para ser tomado na mão. O espírito é o terapeuta que deve primeiro experimentá-lo em si mesmo, para aprender a usá-lo em benefício do corpo social. Senão mata, ao invés de curar; traz o desequilíbrio e a loucura, ao invés de harmonizar as relações do ser e da razão. Daí a importância dos guias espirituais, chefes das confrarias iniciatórias. Eles são, de certa forma, terapeutas da alma, no sentido grego da palavra, psicanalistas antes da época, ou melhor, psicogogos. Se não tiverem feito a serpente neles morrer e renascer, passam a praticar uma psicanálise selvagem e nociva. É o que acontecerá com a decadência das sociedades dionisíacas, consecutiva à clandestinidade em que o mundo moderno as encerra. Quando este mundo de declara o dos Antigos, parece esquecer-se da lição da temperança, que se destaca do conjunto de sua mitologia em todos os casos em que esta trata da serpente. Essa temperança, uma condição para qualquer equilíbrio, sob certos aspectos parece próxima da sabedoria da serpente, da qual Jesus fala.

Os maiores livros esotéricos inspiram-se na serpente: como o Tarô, em que o arcano 14, a Temperança, embora situada entre a Morte e o Diabo, tem uma significação manifesta: um anjo vestido metade de vermelho, metade de reto, metade Terra e metade Céu, despeja um líquido incolor e serpentino alternadamente em dois vasos, um vermelho e outro azul; esses dois vasos simbolizam os dois pólos do ser; o traço-de-união, o veículo de sua troca, repetido indefinidamente, é o deus da água, a serpente. Essa imagem é símbolo da alquimia, expressando de modo evidente o dogma da transmigração das almas e da reencarnação. Basta lembrar que em grego clássico (metagiosmos) o ato de despejar algo em um vaso em outro é tomado como sinônimo de metempsicose. Isto corrobora com essa teoria de que o fluido da temperança representa a serpente. Pois as tradições greco-latinas mostram constantemente reencarnações sob a forma da serpente: esta era a crença ateniense referente á serpente sagrada da Acrópole, supostamente defensora da cidade; ela representava a alma de Erecteu, homem-serpente, considerado um antigo rei, de Atenas e freqüentemente identificado com Poseidon. Uma lenda estranha fazia dele um herói civilizador que teria levado o trigo do Egito. Do mesmo modo, acreditava-se em Tebas que após a morte, os reis e rainhas da cidade transformavam-se em serpentes. Em toda a Grécia, o costume popular ditava que se fizessem libações de leite sobre os túmulos para as almas dos defuntos reencarnados em serpentes. À morte de Plotino, dizia-se que uma serpente havia saído da boca do filósofo com o seu último suspiro. Por fim, em Roma o símbolo do gênio ou espírito-guardião era uma serpente. Seria possível multiplicar os exemplos atuais, emprestados às culturas animistas de Nova Guiné, Bornéu, Madagascar, da África banto, etc.

Essas comparações mostram de modo evidente que essas culturas só se distinguem pelo fato de terem continuado a manifestar abertamente as crenças simbólicas que viram-se ocultas por uma pressão histórica (judaica, e, posteriormente, cristã), sem por isso desaparecerem. É, portanto, no curso da filosofia ou do pensamento sito paralelo que se deve procurar para descobrir a função arquetípica da serpente. Assim, dizia-se que a serpente havia visitado a mãe de Augusto em sonho; a mesma lenda explicava o nascimento milagroso de Cipião, o Ancião de Alexandre, o Grande. Não é de se espantar que essa lenda tenha penetrado nas vidas apócrifas do próprio Cristo; segundo Elien (de natura animalium), no tempo de Herodes, falava-se da visita de uma serpente a uma virgem judia e, de acordo com Frazer, tudo levava a crer[3] que se tratava da Virgem Maria. Seja como for, é conhecida a afinidade que une a serpente ao pombo na simbologia sexual. O que dizer, então, desse costume dos nancis da África oriental, também relatado por Frazer, segundo o qual se uma serpente for ao leito de uma mulher não se deve matá-la, pois é considerada a reencarnação do espírito de um ancestral, ou do falecido pai ou mãe, vindo informar à mulher que o seu próximo filho nascerá em boas condições.[4]

A universalidade das tradições que fazem da serpente o mestre das mulheres, por representar a fecundidade, ressalta que na África este é um traço característico das sociedades matriarcais. Assim, os tcho-kwes (Angola) colocam uma serpente de madeira sob o leito nupcial para assegurar a fecundação da mulher. No círculo voltaico, quando as mulheres senufo concebem, são levadas a casas decoradas com representações de serpentes e os nurumas de Gugoro dizem que uma mulher engravidará se uma serpente entrar em sua cabana.
Na Índia, as mulheres que desejam ter um filho adotam uma naja. Os tupis-guaranis, no Brasil, tornavam fecundas as mulheres estéreis batendo em seus quadris com uma cobra. Em outros lugares, as serpentes são guardiãs dos espíritos das crianças, que são distribuídas à humanidade conforme as necessidades. Na Austrália central, duas serpentes ancestrais percorrem incessantemente a terra, e a cada parada abandonam alguns mai-aurli, espírito de crianças. No Togo, uma cobra gigante que mora num lago pega as crianças da mão de Deus supremo e as traz à cidade.

A ambivalência sexual da serpente se traduz sob o aspecto do seu simbolismo, pelo fato de ser ao mesmo tempo matriz e falo. Este fato é comprovado por um grande número de documentos iconográficos, do neolítico asiático como das culturas ameríndias, no quais o corpo do animal (fálico, na sua totalidade) é ornado de zunidores (símbolos da vulva). Eliade registra um mito negrito em que o simbolismo de matriz aparece nitidamente: no caminho do palácio de Tapern vive uma serpente, sob o tapete que ela confecciona para Tapern. No seu ventre encontram-se trinta mulheres muito belas, adereços de cabelos, pentes, etc. Um Chinoi chamado de arme-Chaman vive nas suas costas, como guardião deste tesouro. O Chinoi que quiser penetrar no ventre da serpente tem de submeter-se a duas provas do gênero da porta mágica que, portanto, tem caráter iniciático. Se conseguir, poderá escolher uma esposa.

A serpente, mestre das mulheres e da fecundidade, também é freqüentemente considerada responsável pela menstruação, que resulta da sua mordida. Alguns historiadores, Krappe entre eles, resaltam a antigüidade dessa crença comprovada nas lendas relativas a Anhiman e de origem pré-masdeísta. É encontrada nos meios rabínicos que atribuem a origem da menstruação às relações de Eva com a serpente, segundo Salomon Reinach; também continua ativa entre os papuas da Nova Guiné. Todos esses exemplos mostram a afinidade simbólica da serpente com a sombra, também considerada uma alma fecundadora e um dom-juan. Na Índia central, o meda de ser fecundada pela sombra é muito comum, então as mulheres grávidas evitam pisar na sombra de um homem, com medo que a criança nasça parecida com esse homem; assim, a sombra é o símbolo da força procriadora do homem eu não só representa a procriação, em geral, como a ressurreição nos seus descendentes.

Essas crenças não deixaram de conservar alguns vestígios no folclore europeu. Hoje em dia ainda se conta nos abruzzis que a serpente tem relações sexuais com as mulheres. Na França, na Alemanha, em Portugal, etc., as mulheres de certas regiões temem que uma serpente lhes entre pela boca durante o sono, especialmente na época da menstruação, e que as engravide.

A condenação da serpente

Embora a cristandade só tenha, na maior parte das vezes, retido o aspecto negativo e maldito da serpente, os textos sagrados do cristianismo comprovam os dois aspectos do símbolo. Assim, no livro de Números, embora as serpentes terrestres enviadas por Deus tenham feito perecer muita gente em Israel, o povo eleito reencontra vida através da própria serpente, de acordo com as instruções que Deus dá a Moisés: Então Deus enviou contra o povo serpentes abrasadoras, cuja mordida fez perecer muita gente em Israel. Veio o povo dizer a Moisés: “Pecamos ao falar contra Jeová para que afaste de nós estas serpentes”. Moisés intercedeu pelo povo e Deus respondeu-lhes: “Faze uma serpente abrasadora e coloca-a em uma haste. Todo aquele que for mordido e a contemplar viverá. Moisés, portanto, fez uma serpente de bronze e a colocou em uma haste; se alguém fosse mordido por uma serpente, contemplava a serpente de bronze e vivia” (Números 21:6-9). Na época cristã, o Cristo que regenera a humanidade algumas vezes é representado como a Serpente atravessada na cruz, como aparece novamente nos séculos XII e XIII, em um poema místico traduzido por Rémy de Gourmont. Entretanto, não é essa a serpente à qual se refere com maior freqüência o pensamento da Idade Média, mas à serpente de Eva, condenada a arrastar-se e à serpente, ou dragão-cósmico, cuja anterioridade o apóstolo João não contesta, em Apocalipse, mas cuja derrota proclama: “Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada, foi expulso para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele” (Apocalipse 12:9).

A partir de então, de sedutor passa a repugnante. Seus poderes, sua ciência, que não podem ser contestados na sua existência, o são na sua origem. Foram considerados como o fruto de um roubo; tornaram-se ilegítimos aos olhos do espírito; a ciência da serpente passa a ser maldita e a serpente que nos habita passará a gerar apenas os nossos vícios, que nos trazem a morte e não a vida. Rémy de Gourmont traduziu um texto surpreendente do século V a esse respeito, o Hamartigensia, ou Gênese do pecado, de Aurelius Prudentius Clemens de Saragoça. Nossos vícios, escreve Prudentius, são nossos filhos, mas ao lhes darmos vida eles nos dão a morte, como o parto da víbora: “Ela não dá à luz por vias naturais e não concebe pelo coito comum que distende o útero; mas assim que sente a excitação sexual, a obscena fêmea provoca o macho, que ela quer sugar com a boca bem aberta; o macho introduz a cabeça de língua tripla na garganta de sua companheira e, em todo fogo, dardeja-lhe seus beijos, ejaculando por esse coito bucal o veneno da geração. Ferida pela violência da volúpia, a fêmea fecundada rompe o pescoço do macho e, enquanto este morre, engole o esperma infundido em sua saliva. O sêmen assim aprisionado custará à mãe a sua vida: quando tornarem-se adultos, estreitos corpúsculo, começarão a arrastar-se em sua morna caverna, a sacudir o útero com as suas vibrações… como não há saída para o parto, o ventre da mãe é dilacerado pelo esforço dos fetos em direção à luz, e os intestinos rasgados rastejam em torno do cadáver natal, lambendo-no – uma geração órfã aos nascer… como os nossos partos mentais.[5] Bem antes que a palavra tenha sido inventada, vê-se que foi na época barroca, e o barroco florescerá durante séculos nessa inversão do maravilhoso, que escolhe a demonologia como seu terreno. A serpente rasteja em meio a flores envenenadas em toda essa paisagem maldita, pela qual, no entanto, se mantém a regeneração no imaginário. É, nas divagações íntimas, a áspide, enroscada no seio de Cleópatra, ou no arbusto de rosas, essas feridas místicas da natureza. São, também, todos os dragões cósmicos que reaparecem, eriçados, vomitando fogo e chamas, no segredo das trevas onde, ciumentos, guardam os tesouros, o mais precioso dos quais é o da imortalidade, não mais para permitir a entrada aos homens, mas para proibi-la. Pois a serpente, por mais satânica que tenha sido transformada, é imortal.

Mas como adquiriu essa imortalidade? A esse respeito Krappe[6] estabelece comparações que esclarecem as fontes desta velha rivalidade homem-serpente, sobre a qual se edificou uma mitologia do mundo cristão: “na epopéia de Gilgamesh, ela (a serpente) rouba do herói a erva da imortalidade, dádiva dos deuses. Na Nova Pomerânia, um bom demônio quis que as serpentes morressem e que os homens mudassem de pele para viver para sempre. Por infelicidade, um demônio mau descobriu um meio de inverter esse arranjo – eis por que a serpente rejuvenesce mudando de pele, enquanto o homem é condenado a morrer… No arquétipo do relato bíblico, a serpente aparece fazendo Adão (ou melhor, Eva) acreditar que a árvore da morte era, na realidade, a árvore da vida; ela própria, evidentemente, comeu os frutos da árvore da vida. A serpente acusada de todos os pecados é a orgulhosa, a egoísta, a avarenta. O bom ser da serpente, para retomar a linguagem comentada anteriormente, não existe mais aqui no cristianismo; subsiste apenas “o mau ser que gosta de se materializar no orgulho: aquele que deixa os pobres sofrerem de penúria e que acumula no coração bens temporais de propriedade, esse não é um cristão, mas um filho da serpente”[7]. Senhor da força vital, não simboliza mais a fecundidade, mas a luxúria; “tendo sido o mais esperto de todos os animais e tendo seduzido o pudor virginal de Eva, inspirou-lhe o desejo do coito bestial e de toda a impudência e de toda a prostituição bestial dos homens”.[8]

O bom ser da serpente só aparece na sua função ctoniana de executor da justiça divina, o que faz lembrar o mito Lacoonte. Assim, ela se apresenta no Inferno de Dante. No início do Canto XXV, depois de ter visto um ladrão, ainda por cima do sacrílego, ser asfixiado por uma serpente, o poeta exclama: “serpes me foram desde então amigas” (Da indi in qua mi fuor le serpi amiche), pois uma dela enroscou-se então, em seu pescoço, como a dizer: Não quero que prossigas / Tolhendo-lhe outra os braços, se enlaçava / Diante sobre o peito e o movimento / Com o rebatido vínculo atalhava.

Adiante, Dante descreve a extraordinária fusão que se opera entre uma serpente e um condenado, em núpcias cuja grandeza furiosa desvenda toda a ambivalência do símbolo serpente na sua significação sexual:


… Fundiram-se depois, como se de cera quente Fossem feitos, mesclando suas
cores, Nem um nem outro parecia mais o que fora antes…

Segundo G. Durand, também é positiva, no final, a significação da serpente-dragão na noção de herói que se elabora na Idade Média e que sobreviverá até os dias de hoje. O Dragão é o obstáculo que é preciso vencer para alcançar o nível do Sagrado; é vencer a besta que o bom cristão tem de esforçar-se em matar dentro dele, imitando São Jorge e São Miguel. O mito pagão de Siegfried representa esse mesmo aspecto. Este novo herói se tornará, na sua decadência, o super-homem e o super-man, através do qual uma civilização dita cristã recai precisamente nos excessos que o cristianismo quer reprimir. As conseqüências disso são bem conhecidas: o esboço de uma moral do Bem e do Mal afrontosamente simplificadora e traumatizante, porque rompe a unidade da pessoa humana, reprimindo no inconsciente as aspirações e as inspirações profundas do ser, não é a menor delas. Em última instância é o próprio princípio vital que se vê atingido no homem, de onde esse mal-estar da nossa civilização: a vida original deve aparecer como um mal puro e simples para a consciência diurna que conseguiu alcançar uma auto-segurança[9]. Essa segurança excessiva, se sabe hoje, sob o pretexto de ser luz, só leva a um novo obscurantismo.

Em direção a um símbolo da serpente reabilitada

Renegar a vida original e a serpente que a encarna equivale a renegar rodos os valores noturnos de que ela participa e que constituem o lima do espírito. Foi preciso esperar pelo século XIX para que, com o Romantismo, se esboçasse um alerta. Mais uma vez, foram os poetas e artistas que o promoveram, razão pela qual os mais eminentes tornaram-se os malditos de uma sociedade, cuja liberação empreenderam: Deixe vir à luz do dia o que vistes durante a noite, escreve o pintor alemão C. D. Friedrich, enquanto na França, Coubert o realista responde: Eu vejo bem demais! É preciso que me furem um olho. Está aberta a brecha pela se fará uma verdadeira revolução (no século XX) do pensamento, em que o movimento surrealista desempenhou o papel decisivo: Creio, diz André Breton em 1924 no primeiro Manifesto do Surrealismo, na resolução futura desses dois estados, tão contraditórios em aparência, que são os sonhos e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, digamos assim. Enquanto isso, Freud, com a psicanálise, inventou o primeiro método clínico destinado a reintegrar o homem em si mesmo, atacando censuras internas que se tornaram patogênicas. Portanto, não é de se espantar que o pai da psicanálise tenha sido tão condenado: é a repetição da condenação da serpente.

Este também é o momento em que o pensamento ocidental aceita voltar-se com interesse que ultrapassa o exotismo para as culturas ditas primitivas ainda sobreviventes no planeta, principalmente na África, na América, na Oceania, em todo lugar em que se fala de animismo. Embora para um ocidental dos dias de hoje a serpente não passe de um objeto de repulsa, nessas regiões preservadas ela permaneceu um arquétipo completo que mantém vivas e aceitas as suas valências positivas. Uma criança índia ou africana não tem, necessariamente, medo de cobra, mesmo se as estruturas modernas, recentemente implantadas, tentam mascarar o seu rosto tradicional. No Benin, por exemplo, o velho deus Dan, que falei no começo deste texto, não se surpreende com nada e em toda novidade sabe reconhecer o que é seu. Como senhor da energia e movimento, tornou-se o patrono dos trens, dos barcos a vapor, dos automóveis e dos aviões, enquanto o seu vigário Ho-Da, cordão umbilical, ainda é aquele que liga a parturiente à velha Deusa-Terra quando esta recebe daquele o peso do filho que nasce. Eliade já havia observado que, na África, a serpente às vezes simbolizava a massa humana, o povo que luta com o chefe vitorioso. Na China, onde a baba do dragão tem o poder de fecundar as mulheres, o Presidente Mao Tse-tung um dia respondeu a jornalistas ocidentais que “não se conversa sobre a pérola do dragão”, sobre a perfeição evidente.

Vê-se que a serpente, arquétipo fundamental ligado às fontes da vida e da imaginação, conservou pelo mundo as valências simbólicas as mais contraditórias em aparência. A poesia, a arte, a medicina, que sempre tiveram a serpente como atributo, encarregaram-se disso. A ciência fundamental concorre para isso através das suas descobertas mais revolucionarias: é o que se pode concluir da célebre equação de Einstein sobre a identidade da matéria e da energia.

Assim, apesar de todas as perturbações do nosso tempo, Atena, deusa de toda ciência verdadeira, continua a segurar na Mao e sobre o peito a serpente, da qual nasceram Dioniso, Satanás e os Imperadores da China.


[1] DORESSE, J. “Les livres secrets de gnostiques d’Egypte”, pp. 51. Paris, 1958.
[2] DORESSE, J. “Les livres secrets de gnostiques d’Egypte”, pp. 44. Paris, 1958
[3] FRAZER J.-G., “Myths of the Origino f Fire”, pp. 5, 81. Londres, 1930.
[4] FRAZER J.-G., “Myths of the Origino f Fire”, pp. 85. Londres, 1930.
[5] Gourmont, Rémy. “Le latin mysthique. Le poetes de l’antiphonaire et La symbolique au Moeyn Age”. pp. 49-50. Paris, 1913.
[6] Krappe, Alexandre H. “La genèse des myths”. pp. 288. Paris, 1952.
[7] Boehme, Jacob. “Mysterium Magnum”. Tradução de N. Berdiaeff, 2 vols. PP. 243. Paris, 1945.
[8] Ibidem, PP. 250.
[9] Keyserling, H. “Médatations sud-américaines”. Tradução de A. Beguin, Paris, 1982.


Fonte: Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. “Dicionário de Símbolos – Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números”. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 19ª edição, 2005.

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