segunda-feira, 30 de junho de 2014

ESPIRAL

A espiral, cuja formação natural é frequente no reino vegetal (vinha, volubilis) e animal (caracol, conchas etc.), evoca a evolução de uma força, de um estado.

Essa figura é encontrada em todas as culturas, carregada de significações simbólicas: é um tema aberto e otimista — partindo de uma extremidade  dessa espiral, nada mais fácil do que alcançar a outra extremidade.

Ela manifesta a aparição do movimento circular saindo do ponto original; mantém e prolonga esse movimento ao infinito: é o tipo de tinhas sem fim que ligam inces­santemente as duas extremidades do futuro... (A espiral é e simboliza) emanação, extensão, desenvolvimento, continuidade cíclica mas em progresso, rotação criacional.

A espiral tem relação com o simbolismo cósmico da Lua*, o simbolismo erótico da vulva, o simbolismo aquático da concha*, o simbolismo da fertilidade (voluta dupla, chifres* etc.); em suma, representa os ritmos repetidos da vida, o caráter cíclico da evolução, a permanência do ser sob a fugacidade do movimento.

Trata-se, na verdade, da espiral helicoidal, mas o simbolismo pouco difere da espiral plana. Esta tem maior ligação com o labirinto*, evolução a partir do centro, ou involução, volta ao centro. A espiral dupla simboliza simultaneamente os dois sentidos desse movimento, o nascimento e a morte, kalpa e pralaya, ou a morte iniciática e o renascimento transformados em um só ser. Indica a ação, em sentido contrário, da mesma força em torno de dois pólos, nas duas metades do Ovo do mundo. A espiral dupla é o traçado da linha mediana do yin-yang*, a que separa as duas metades, preta e branca, da figura. O ritmo alternativo do movimento fica, desta forma, expresso com maior precisão, como no antigo caracter chen, que, através de uma espiral dupla, representa a expansão alternante do yin e do yang.
A espiral dupla é, ainda, o duplo enroscamento das serpentes em torno do caduceu*, a dupla hélice em torno do bastão bramânico, o duplo movimento dos nadi em torno da artéria central sushumna: polaridade e equilíbrio das duas correntes cósmicas contrárias. Deste modo, o mesmo símbolo pode se expressar através da rotação alternativa da espiral nos dois sentidos: é o caso da serpente Vasuki, puxada alternadamente por deva e pelos asura no mito hindu da Batida do Mar de Leite; do isqueiro de rosca, que tentaram relacionar com a dupla espiral céltica e com as funções de Júpiter como senhor do fogo. Na Ásia, ainda se faz uso de furadeiras com brocas muito semelhantes. O que é preciso notar aqui é que a produção do fogo não difere da do amrita. É o resultado da alternância e do equilíbrio de duas energias de sentido contrário. A espiral dupla se relaciona, ainda, com certas figurações do dragão*.

Além disso, o dragão se enrosca em espiras helicóides em volta das colunas dos templos. A serpente da kundalini também, em torno do svayambhuva-linga, na base da coluna vertebral, mas então a espiral não é desenvolvida, é embrionária. E o yin-yang pode ser considerado o traço descritivo, no plano horizontal, da hélice evolutiva. Essa hélice, de voltas infinitesimais, simboliza o desenvolvimento e a continuidade dos estados da existência; também os dos graus de iniciação, como é o caso no uso simbólico da escada* em espiral.

A espiral é um símbolo de fecundidade, aquática e lunar. Baseada em todos os ídolos femininos paleolíticos homologa todos os centros de vida e de fertilidade. De vida, porque indica o movimento de uma certa unidade de ordem ou, inversamente, a permanência do ser sob sua mobilidade.

Pode ser encontrada em todas as cultu­ras. A espiral é um leitmotiv constante... O simbolismo da concha espiralada é reforçado por especulações matemáticas que fazem dela o signo do equilíbrio dentro do desequilíbrio, da ordem do ser no seio da mudança. A espiral, sobretudo a logarítmica, possui essa propriedade notável de crescer de modo terminal, sem modificar a forma da figura total e, assim, de manter-se com forma permanente apesar do crescimento assimétrico. As especulações aritmológicas sobre o Número de Ouro, número da figura logarítmica espiralada, vêm completar naturalmente a meditação matemática da semântica da espiral. É por todas essas razões semânticas e por seus prolongamentos semiológico e matemático que a forma helicóide da casca do caracol, terrestre ou marinho, constitui um glifo universal da temporalidade, da permanência dó ser através das flutuações da mudança.

Entre os índios Pueblo de Zuni, na grande festa do solstício de inverno — que é também a festa do Ano-Novo, o primeiro dia — depois de acender-se o fogo do Ano-Novo sobre um altar, entoam-se cantos espirais e dançam-se danças espirais. Esse costume poderia dar a chave simbólica da origem de todas as danças giratórias, das quais a mais famosa é a dos Mevlevi ou dervixes-giradores turcos: como diz Gilbert Durand, assegurar a permanência do ser através das flutuações da mudança. De fato, o solstício de inverno é, simbolicamente, o momento zero da cosmologia maia, que tem por símbolo a espiral. É o instante crítico em que é preciso assegurar o recomeço do ciclo anual, sem o qual seria o fim do mundo. São conhecidos os sacrifícios humanos loucos que, sob o terror provocado por essa ameaça, os astecas praticavam para dar força e sangue ao Sol, a fim de que ele retomasse sua trajetória.

A espiral dupla de movimento inverso (em S) é um símbolo das mudanças lunares e do trovão, pois a tempestade é muitas vezes associada às mudanças da Lua. É uma expressão gráfica do simbolismo da fecundidade, associado ao complexo tempestade-trovão-relâmpago. A esse título, ela pode representar o zunidor*.

Para inúmeros povos da África negra, a espiral ou o helicóide simbolizam a dinâmica da vida, o movimento das almas na criação e na expansão do mundo. O glifo solar dos dogons e dos bambaras é revelador: é feito de um pote (matriz original) envolto por uma espiral de cobre vermelho de três voltas (símbolo da masculinidade); esta representa o verbo original, a primeira palavra do Deus Amma, i.e., o espírito, sêmen de divindade. Entre os bambaras, o Mestre Faro, senhor da Palavra, é representado por uma espiral no centro de pontos cardeais. Eles o materializam com um barrete de verga com oito espiras, outrora usado pelos reis. De acordo com a espiral usada por Faro, quando da primeira reorganização do mundo, ele se movimenta de quatro em quatro séculos para fiscalizar os confins, e depois retorna ao ponto central, de onde vigia e rege o universo. Da mesma forma, o mecanismo da procriação seminal do homem e a sua palavra, que penetram a mulher pelo sexo mas também pela orelha, que é um outro sexo,  enroscam-se em espiral em torno da para fecundar o germe etc.

Mais ao sul, um simbolismo análogo rege o emprego da espiral no pensamento cosmogônico dos luluas e dos lubas, tribos bantos do Kassai (Zaire). O movimento das almas, espíritos, gênios, entre os quatro planos do universo, desenha uma espiral ou um helicóide. Na glíptica desses povos, uma grande espiral ladeada de duas pequenas representa o Deus Supremo criando o Sol e a Lua. Uma só espiral representa a serpente pitón enroscada, imagem do Criador e do movimento cíclico da vida. Representa também o Céu, e, ainda, a peregrinação cíclica das almas, encarnadas, desencarnadas e reencarnadas sucessivamente. Uma espiral com as espiras estriadas de forma regular significa o movimento da vida do homem, passando alternadamente pelo bem e o mal. Por analogia, a casca do caracol terrestre, igualmente espiralada e estriada, entra na composição dos medicamentos de uso duplo, benéfico e maléfico.

Dan, uma grande divindade vodu, símbolo da continuidade, geralmente representado no Daomé sob a forma da serpente que morde a própria cauda, também assimilado ao arco-íris, é considerado um ser duplo bissexuado e gêmeo de si próprio, os dois em um, enrolados em espiral em torno da terra, que preservam na desintegração. A espiral tem claramente a significação fundamental do movimento original, é a vibração criadora dos dogons, que está na base de toda criação, e Paul Mercier tem essa frase surpreendente: por si próprio ele nada faz; mas, sem ele, nada pode ser feito.

Graficamente, os luluas representam a Terra, a Lua e o Sol através de uma série de círculos concêntricos ou de espirais, que só se distinguem em tamanho;  o menor desses signos é a Terra, o maior, o Sol; duas espiras ou círculos concêntricos para a Terra, três para a Lua e quatro para o Sol.

Com a sua dupla significação de involução e de evolução, a espiral se une ao simbolismo da roda*, cuja frequência nas representações figuradas ou nos temas célticos ornamentais (metalurgia, cerâmica, moedas etc.) ela alcança e ultrapassa. A ciência moderna quis ver nela um equivalente do fulmen latino e um símbolo céltico do raio, mas essa explicação é insuficiente, pois a  espiral é, na verdade, um símbolo cósmico. É um tema que encontramos com frequência gravado pelos celtas nos dólmens ou monumentos megalíticos.

Para os germânicos, uma espiral cerca o olho do cavalo que, atrelado à carruagem do Sol, simboliza a fonte da luz.

A espiral simboliza, igualmente, a viagem da alma, após a morte, ao longo dos caminhos desconhecidos, mas que a conduzem, através dos seus desvios ordenados, à morada central do ser eterno: Creio que em todas as civilizações primitivas em que a encontramos, desde o Cabo Norte até o Cabo da Boa Esperança, e em muitas civilizações da América e da Ásia, e até mesmo da Polinésia, a espiral representa a viagem que a alma do defunto realiza, após a sua morte, até o seu destino final.

Fonte: Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. “Dicionário de Símbolos – Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números”. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 19ª edição, 2005.



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